Pablo Miyazawa

Dave Gibbons, o artista de Watchmen

[Nota: A entrevista a seguir foi realizada por telefone no primeiro trimestre de 2009, na ocasião do lançamento do livro Os Bastidores de Watchmen, quando eu trabalhava como editor de variedades da Rolling Stone Brasil. Trechos da conversa foram publicados na edição impressa (#30, março/2009), enquanto a íntegra foi publicada no site].

Quando o assunto é Watchmen – considerada a história em quadrinhos mais importante de todos os tempos – o nome do escritor e roteirista Alan Moore sempre aparece em evidência. O autor inglês, porém, é conhecido por suas declarações de repulsa às adaptações de suas histórias para cinema.

O ilustrador Dave Gibbons, por sua vez, age da maneira mais inversa o possível: além de se orgulhar de ser o co-criador de Watchmen, o artista britânico de 59 anos mergulhou de cabeça na produção do longa-metragem, dirigido por Zack Snyder e com estréia prevista para esta sexta, 6 de março.

Aproveitando o gancho cinematográfico, Gibbons, que confessa jamais ter recebido o devido crédito por sua participação na saga, decidiu contar o seu lado da história. Recém-lançado, Os Bastidores de Watchmen (Watching the Watchmen, editora Aleph) é uma versão em livro do que seria um making of da HQ lançada originalmente em doze capítulos a partir de 1986, com reproduções de esboços originais, anotações, curiosidades e comentários detalhados do desenhista.

Em longa conversa telefônica, semanas antes da estréia nos cinemas, Gibbons, simpático e falante, discorreu sobre o legado de Watchmen, sua participação no filme e sua relação com Alan Moore. Ao final da entrevista, aproveitou para esboçar seu interesse em visitar o Brasil em breve: “Vamos tomar uma cerveja quando eu estiver aí”.

Como foi retornar ao universo de Watchmen após tantos anos? Você sabia que retomaria esse tema, e por isso guardou todos os desenhos, rabiscos, anotações para Os Bastidores de Watchmen?
Eu sou um grande fã de quadrinhos e sempre gostei desses livros de bastidores que mostram a origem das histórias, com rabiscos, anotações, aquela coisa mais crua. Talvez por isso tenha decidido por conservar todo esse material em quatro ou cinco armários… Guardei tudo muito bem organizado, porque enquanto criava a história, tinha que ficar consultando as páginas antigas quando precisava redesenhar um cenário. Eu acho que, instintivamente eu pensava: “Um dia isso poderia ser publicado em uma revista… pode não virar um livro, mas fãs e historiadores podem se interessar por esse material.” Quando o filme apareceu, achei que seria um bom momento, porque sabia que haveria um grande interesse em Watchmen novamente. Então propus à [editora] DC Comics que fizéssemos um livro. Eu havia esquecido que tinha a maioria desse material, então foi bastante emocionante rever tudo aquilo. O livro tem sido muito bem recebido, então fica claro que existem muitos fãs como eu por aí!

Você se considera um cara que tem dificuldade em jogar as coisas fora? Eu fico imaginando a bagunça que é o seu escritório…
[Risos] Queria poder te mostrar uma foto! Eu mantenho meu espaço de trabalho limpo, mas tenho muitas prateleiras, livros, caixas, arquivos e armários. Coleciono quadrinhos desde que era muito novo. Eu ainda tenho a primeira revista que comprei, quando tinha sete anos! E guardo montes de livros de referências, que hoje em dia são obsoletos, já que dá pra se arrumar tudo pela internet… Então, sim: definitivamente, eu sou um colecionador.

E o que sua família diz sobre isso? Sua mulher reclama da bagunça?
Não, ela não liga, porque toda minha bagunça fica no escritório. Não guardo nada em casa. Eu tinha um estúdio caseiro, mas quis fazer um espaço separado para trabalhar. Porque a minha esposa não gosta de guardar nada – ela quer sempre tudo limpo. O que é muito bom, porque assim não tenho nem chance de bagunçar a casa também.

Você trabalhou em Watchmen quando tinha por volta de 35 anos. No que diz respeito à maturidade, você acredita que existe um pico de criatividade que cada pessoa atinge na vida?
Eu bem que gostaria de dizer que é possível se manter criativo durante toda a vida. Acho que há uma relação próxima entre idade e experiência. Na época em que fizemos Watchmen, Alan [Moore] e eu éramos jovens o bastante para estarmos entusiasmados e famintos, mas éramos velhos o bastante para ter experiência. A gente sabia o que devia fazer e o que queríamos fazer. O timing do surgimento de Watchmen, nesse sentido, foi maravilhoso. Não estou querendo afirmar que qualquer pessoa que não esteja na casa dos 30 não seja criativa o bastante. Só acho que você aprende de maneira diferente à medida que envelhece. Você recebe mais experiências, enxerga coisas sob perspectivas diferentes, seu trabalho fica mais refinado. Você provavelmente é mais produtivo em certo momento da sua vida, porque você pode se cobrar mais por seu trabalho. Acho que é bem por aí.

Você acha que se fosse dez anos mais novo teria a capacidade de fazer Watchmen?
Oh, não, não. Não acho que teria a experiência e a habilidade. Dez anos antes de fazer Watchmen foi quando eu realmente aprendi a fazer quadrinhos, ou seja, aprendi fazendo. Acho que se eu fosse tentar antes, não teria a habilidade necessária.

Você costuma dizer que não tinha idéia do que Watchmen se tornaria quando começou a fazê-lo. Mesmo com o feedback positivo das primeiras edições, você e Alan ainda assim conseguiram manter os pés no chão. Você acha que, se percebesse na época o quão importante a obra se tornaria anos depois, isso tornaria o trabalho mais difícil?
Bem, isso é interessante, porque a gente meio que trabalhava dentro de uma bolha. Foi durante as três primeiras edições que meio que determinamos o estilo de Watchmen e o que iríamos fazer. Alan escrevia o roteiro, eu desenhava, o John [Higgins] coloria e mandávamos para a DC. E o único comentário que recebíamos era: “Ei, pessoal, ótimo, parabéns!” E eles nunca mudavam nada! Foi assim com a maioria das coisas que enviei para a DC antes de fazer o Watchmen: os americanos sempre são encorajadores e positivos em seus comentários. “Legal, Dave, está ótimo!” Então, a gente não sabia bem o que eles estavam achando de verdade. Foi só quando visitamos os Estados Unidos, após o lançamento das primeiras edições, que tivemos um retorno. E foi dos mais positivos! Após isso, houve um pouco de pressão, porque as pessoas diziam que estávamos fazendo algo brilhante. Se você fez apenas um quarto do trabalho, acaba se dando conta que precisa fazer tudo aquilo de novo mais três vezes, só para manter o padrão elevado. Por outro lado, o nosso cronograma era tão apertado que nem tínhamos tempo de pensar sobre o que estávamos fazendo. A gente tinha de sentar e fazer! E acreditar em nossos talentos e habilidades para vencer o desafio.

Após algumas edições, a gente realmente não imaginaria que o negócio iria além daquilo. Na época, graphic novel não era algo muito comum. A gente só achava que Watchmen acabaria indo pro balcão de revistas velhas das livrarias, e eles venderiam essas edições e, eventualmente, os direitos seriam revertidos pra nós. E seria o fim daquilo. Não poderia prever que a coisa iria durar da maneira que dura, que ganharia prêmios, ou ainda que, vinte anos depois, viraria um filme.

Pessoas que tentam ler Watchmen hoje conseguem acompanhar a história completa. Mas originalmente, ele foi lançado em doze partes, consumidas separadamente. Você acha que havia capítulos que não eram tão bons quanto os outros?
Ah, sempre dá para pensar em fazer as coisas diferentes. Mas acho que, no geral, Watchmen se completa muito bem. Naquela época, havia uma emoção especial pelo lançamento de cada novo episódio, principalmente entre leitores e os vendedores de quadrinhos. Parte disso acontecia por causa do modo como produzimos a história, meio que como um reloginho, indo sempre em frente. Era preciso esperar até a edição chegar para conferir o que viria depois. Não dá pra passar essa sensação em uma edição completa e encadernada…

Eu, particularmente, tenho minhas edições preferidas: eu sempre adorei o capítulo 4 (“Watchmaker”). Adoro a narrativa, daquela coisa de ir para frente e para trás no tempo. Tenho meus capítulos favoritos, mas não acho que exista uma edição mais fraca que as outras. Acho mesmo que fizemos um trabalho notável.

Há músicos que odeiam escutar a própria música. E você, quando foi a última vez que leu Watchmen inteiro, de cabo a rabo?
[Risos] Essa é uma questão muito boa. Devo dizer que você está me fazendo perguntas que não me fizeram antes, e está me fazendo pensar no que responder. Agradeço por isso!

É muito estranho. Quando se produz uma história em quadrinhos, você passa por diversas fases. Antes de desenhar qualquer coisa, aquilo será “a melhor coisa que você já fez na vida”. Daí você começa a trabalhar duro, afinal, para uma coisa dar certo, tem que ralar muito. Mas o resultado não necessariamente se encaixa com a imagem que você tinha anteriormente na cabeça, e você se decepciona um pouco. Na hora em que envia as páginas para a editora, você já está cansado de olhar pra aquilo. Daí, quando vê a revista impressa, só consegue enxergar as coisas que poderia ter feito melhor, ou os erros que cometeu.

Anos se passam, e você olha para aquilo de novo como se tivesse sido desenhado por outra pessoa. E pensa: “Ei, até que não é tão ruim!” Você acaba aceitando aquilo. E em Watchmen, tivemos a chance de fazer uma espécie de “remasterização digital”, quando colorirmos tudo por computador. Houve a oportunidade de redesenhar algumas coisas, mas, citando a analogia musical que você citou, eu decidi não fazer nenhuma alteração. É como um disco ao vivo clássico: é aceitável limpar ruídos de platéia, mas se houver regravação de instrumentos, aquele se torna algo diferente – não é mais aquela performance autêntica. Então, eu até consigo enxergar falhas em Watchmen, mas não quero mudar nada. Pra falar a verdade, eu ainda fico surpreso de como a história funciona bem nos dias de hoje. Dizendo isso, admito que tem pelo menos uns 15 anos que não me sento para ler Watchmen. Estou pensando em fazer isso no avião a caminho para os Estados Unidos, para quando eu escutar certas perguntas, não me sentir um completo idiota [risos].

Quer dizer que os fãs sabem muito mais sobre a história do que você mesmo?
Veja só, a minha esposa jamais havia lido Watchmen. O que não é exatamente uma surpresa, porque muita gente que trabalha com quadrinhos diz que suas mulheres não ligam muito para seus trabalhos. Quando começou essa conversa sobre o filme, minha mulher virou e disse: “Parece que agora eu vou ter que ler, né?” E eu: “Sim, porque é isso que vai pagar o aluguel daqui em diante, então acho que você deveria conhecer!” Fomos visitar o set do filme em Vancouver [Canadá] e ela leu a história toda no avião, e adorou. Nos intervalos das filmagens, os atores me fizeram perguntas bem complexas sobre o enredo, e eu ficava “bem…”. E ela: “Você se lembra, Dave! É o mesmo episódio em que o Dr. Manhattan fez isso e aquilo”. [Risos] Ao que parece, ela agora é a especialista em Watchmen. E não eu!

Qual foi sua reação quando soube que o filme seria dirigido por Zack Snyder. Você conhecia o trabalho dele? Assistiu a 300?
Na verdade, eu não sabia nada sobre ele. Fui convidado para a estréia de 300 em Londres e fiquei admirado com o filme. Ele entendeu exatamente o que o Frank [Miller] pretendia fazer. Me apresentei a Zack logo após a sessão: ele estava a caminho da área VIP, e eu só queria dizer um “oi”, mas ele parou e conversamos um tempão. Relembrando o que você perguntou antes, eu tive a sensação que ele tinha a habilidade e a energia para fazer Watchmen direito. Daí, mantivemos contato após esse encontro.

Eu tive uma pequena participação na produção. Zack queria filmar uma cena que não estava na HQ original, e pediu para eu desenhá-la como se ela fizesse parte da história, só para ver a maneira como eu teria abordado a idéia. Eu também dei opiniões a uma versão inicial do roteiro, e também fui encorajado a dar minhas opiniões sobre a escolha do elenco. Então, eu fui uma espécie de consultor no filme.

Não é meio triste que a maioria das pessoas irá tomar contato com Watchmen pela primeira vez em outra mídia que não aquela para qual foi criada originalmente?
Olha, tem algo que eu sempre digo: se você acabar eventualmente lendo a graphic novel, antes ou após ver o filme, já vai me deixar feliz. Eu ainda não reli a história por inteiro após ter visto o filme, mas acho que a experiência será enriquecida por eu já ter assistido. Pra mim, a verdadeira experiência Watchmen é proporcionada pela HQ, já que foi como foi originalmente criada. Mas acho que este será uma das boas conseqüências da existência do longa-metragem: ele fará muitas pessoas irão atrás dos quadrinhos.

Você continua em contato com Alan Moore, certo? Você falou com ele sobre seu livro? O que ele achou?
Sabe, Alan é um cara muito infeliz com Hollywood, então ele não teve nada a ver com esse filme. Entretanto, quando comecei a fazer Os Bastidores de Watchmen, pensei que o livro não estaria completo se não tivesse a participação dele. Ele foi gentil o bastante para deixar que eu reproduzisse algumas páginas de seu roteiro. Mas ele não quis falar comigo – quer dizer, ele ficou feliz em conversar comigo, mas não sobre o filme. Mas eu mandei uma cópia do livro pra ele, com um bilhete agradecendo pelas boas memórias – você pode ver que eu dediquei o livro a ele. Mas eu nunca recebi uma resposta de Alan a respeito. Porém, recebi um cartão de Natal, então acho que ainda somos amigos [risos]. Ele provavelmente não quer mais ter que pronunciar a palavra “Watchmen”, o que eu respeito totalmente. Certamente não vou telefonar e perguntar: “E aí, Alan, o que você achou do livro?” Vou deixar isso para ele.

Você já tentou convencê-lo sobre Watchmen? Tipo, “Ei, Alan, dê uma chance a este filme, será legal?”
Acho que não devo tentar persuadir o Alan sobre qualquer coisa. E eu não faria isso de jeito nenhum. Ele declarou a posição dele muito claramente, e me pediu especificamente para não falar com ele sobre o assunto, então, como amigo, se é isso que ele quer, é assim que será.

Mas, pessoalmente, o que você acha desse posicionamento radical dele? Você concorda com esse ponto de vista?
Ele teve experiências terríveis com Hollywood, especialmente com [a adaptação de] A Liga Extraordinária [2003] e acho que foi aí que tudo começou. A partir de V de Vingança [2006], ele decidiu que não queria mais brincar com Hollywood. Alan é um homem de princípios. A maioria das pessoas diria: “Ok. Se vão fazer um filme, é bom que tenha meu nome nele. Se ele for bom, e render algum dinheiro, vou querer a minha parte.” Alan, por sua vez, não quer dinheiro, nem crédito – o que, no pensamento de Hollywood, é uma loucura. Eu fico triste que isso tenha chegado a esse ponto, porque eu, pessoalmente, tive uma ótima experiência com Watchmen… Fico chateado que ele não possa aproveitar do jeito que estou aproveitando. Mas repito: eu respeito totalmente a decisão dele e não tentaria de maneira alguma persuadi-lo ou convencê-lo do contrário.

É estranho ver apenas o seu nome nos créditos do filme, e não o dele?
Bem, é estranho. Isso não apresenta o quadro completo. Antigamente, muitos jornalistas se acostumaram a se referir à obra como “Watchmen, de Alan Moore”. Eu fui deixado de fora muitas vezes, assim como muitos outros parceiros de Alan ao longo dos anos. Alan, por sua vez, jamais deixou de dar crédito a quem trabalhou com ele, sempre falou muito sobre o que eu e John fizemos, então nunca tive nenhum problema quanto a isso. Sempre foi minha família que mais ficava chateada de eu não receber o crédito que eu merecia. Mas é bastante irônico agora que o nome de Alan não esteja no filme. Foi esse um dos principais motivos pelos quais eu fiz o livro Os Bastidores de Watchmen: para voltar ao inicio de tudo e deixar bastante claro que, sem o Alan, não haveria Watchmen. Então, me sinto feliz agora de ter feito tudo que poderia para deixar as coisas claras e garantir que o nome dele estivesse ligado a isso tudo.

Você já pensou em dirigir um filme, como Frank Miller fez em Sin City e The Spirit?
Bem, acho que qualquer desafio criativo poderia me agradar. Minha habilidade é em contar histórias através de imagens, e é exatamente isso que um filme faz. Eu já não sei se conseguiria dirigir um filme… Eu me dou bem com pessoas, sei falar, sei dizer às pessoas o que eles devem fazer. Provavelmente é preciso saber muito mais do que isso, mas… Eu me sinto com o cinema da mesma maneira que com os videogames: eu já desenhei muitas histórias nos últimos anos e me sinto preparado e aberto a novos desafios. A resposta é sim, eu estou interessado. Quem não estaria? Mas não tenho planos ou ambições específicas em relação a isso no momento.

Texto originalmente publicado no site Rolling Stone Brasil em 5/3/2009.


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