Pablo Miyazawa

Division 2

Games são obras políticas, mesmo que você não queira que sejam

Nem todo mundo gosta de discutir política. Hoje, mais do que nunca, talvez seja o assunto mais complexo que existe, superando a religião e o futebol no ranking dos “temas que vão dar briga no almoço da família”. Discordar do outro é tão fácil quanto concordar. Quem tem uma opinião forte dificilmente vai tolerar a versão de um opositor também convicto. É por isso que muitos preferem passar longe desse tipo de debate.

Mas evitar totalmente é algo impossível, porque somos seres políticos por definição. Tudo o que acreditamos e fazemos é baseado em experiências pessoais, observações da realidade e também no que nos ensinam em casa, na escola, entre amigos. O modo como nos comportamos e tomamos decisões (quase) sempre está em acordo com nossos pontos de vista diante da sociedade. Às vezes fazemos algo de que discordamos apenas para não entrarmos em embate — isso em si, já é pura política. Por outro lado, defender crenças e interesses pessoais também é uma escolha política. Por mais natural que seja, política ainda é um assunto complicado demais, e contextualizá-lo no mundo escapista e colorido dos videogames pode soar algo desnecessário. Eu entendo se você pensa assim. Mas é preciso falar sobre isso, ainda mais em tempos como os que vivemos agora.

Abordar política explicitamente em videogames sempre foi um grande tabu, seja para quem os produz como para uma parcela que os consome. “Não ponham política no meu entretenimento” é uma típica frase de ordem de opositores mais barulhentos, ostentando a convicção de que são estruturas que não deveriam se misturar, tal como água e óleo. Só que a alegação de que games são “apenas para serem jogados e não devem ser levados tão a sério” e, por isso, não são espaço para discussões importantes é tão absurda quanto contraditória. Ora, se games são mesmo arte como muitos de nós acreditamos, então também são produtos políticos, já que a arte é o reflexo das ideias, emoções e escolhas de um ou vários indivíduos. Como expressão artística, jogos eletrônicos reproduzem as muitas maneiras que diferentes pessoas enxergam o mundo.

A verdade inconveniente, portanto, é que todo game carrega um contexto político e pode ser analisado dessa maneira. Alguns exemplos já revelam seus temas explicitamente e fica difícil esquecer disso durante a experiência de jogar. Em outros, é preciso interpretar as escolhas da empresa responsável e de seus criadores. Sim, Metal Gear Solid de Hideo Kojima é bem mais do que uma franquia de espionagem instigante: é também um tratado sobre guerra, violência, heroísmo, pacifismo, traições, poder da mídia e o funcionamento das engrenagens das estruturas político-sociais. Mas é possível atravessar toda a aventura sem nem se dar conta disso.

O mesmo se aplica aos filmes de super-herói que adoramos, as séries da Netflix que maratonamos, as HQs que lemos. Há intenções implícitas (e não necessariamente louváveis) em um viciante puzzle vertical de docinhos, em um inclusivo simulador de dança pop ou em um inútil idle game como Cookie Clicker, que poderia ser interpretado como um manifesto crítico à selvageria do capitalismo. É claro que nem todos os games são relevantes politicamente, mas as mensagens estão lá, para quem quiser procurar.

Essencialmente, todos os videogames representam certos tipos de expressões políticas. Mesmo sendo uma forma de fuga das mais populares e saudáveis, também são manifestações culturais criadas por indivíduos com convicções próprias, mas comandados por corporações que, por suas vezes, também possuem interesses — ainda que muitas se esforcem para negar esse fato.

Claro, é muito mais fácil negar uma posição do que assumir uma. Lembro de entrevistar uma artista da equipe de The Division 2 durante a BGS 2018. Apesar de a assessoria não ter pedido para evitar certos tópicos, qualquer questão sobre decisões criativas e comparações com a realidade eram respondidas com notável dificuldade e uma bela ginástica de palavras. E isso aconteceu frequentemente durante a divulgação do game. Algo parecido ocorreu no ano seguinte, quando conversei com os produtores de Call of Duty: Modern Warfare, que afirmaram que os horrores experimentados no jogo não representavam qualquer tipo declaração política, mas sim eram meramente o combustível narrativo de um simulador de guerra inspirado em fatos reais. Por outro lado, o produtor da franquia Wolfenstein nem piscou ao me responder que no game “os nazistas representam o mal e precisam ser derrubados”, mesmo que tenha dito na mesma frase que jamais houve “uma agenda política por trás do jogo”.

Além desses, há muitos games AAA ainda mais explícitos (e pouco assumidos) em suas ideias. BioShock, por exemplo, oferece uma bela discussão sobre regimes totalitários por trás de seus Big Daddies e injeções de ADAM. Watch Dogs 2 discute o controle de grandes corporações sobre as privacidades dos indivíduos e, em seu próximo capítulo, a globalização. A franquia GTA, de sua maneira toda niilista, discute os dois lados da moeda sobre ter uma vida criminosa. A série Civilization de Sid Meier nos ensina como o ato de governar funciona, ainda que quase sempre por meio do uso da força militar. Será que algum desses blockbusters se reconhece como obra de cunho político? A resposta você deve imaginar.

Em contrapartida, parece haver certa esperança para esta causa nos games indie: menos avançadas tecnologicamente mas não por isso mais superficiais, essas obras exigem menor investimento e tempo de produção mais curto, dando-se ao luxo de poderem soar politizadas. Papers, Please é um dos que sempre surge em qualquer discussão sobre games que assumem corajosamente suas intenções. É um título simples que lida com os aspectos morais ligados à pobreza, injustiças sociais e a questão dos refugiados, mas quem quiser pode tratá-lo como um interessante point-and-click de adivinhação. Assim como This War of Mine, um pesado comentário sobre os horrores da guerra pelo ponto de vista dos civis, pode ser curtido meramente como um instigante e sombrio game de sobrevivência. Quanto se absorve de cada experiência depende apenas de cada um.

O simples ato de produzir, comercializar e promover um game se trata de uma escolha corporativa, o que por si só também é uma decisão política. Ainda assim, as grandes produtoras continuam a se esforçar para serem vistas como criadoras de entretenimento neutras e apolíticas. Deveria ser diferente? Sem dúvidas. Dada sua essência interativa e infinitas possibilidades narrativas, videogames podem ser uma plataforma poderosa de propagação de ideias. Mas não dá para negar a legitimidade das decisões corporativas por trás dessa postura “isenta”, pelo menos comercialmente falando: a intenção dos ambiciosos jogos de grandes orçamentos é agradar ao maior contingente possível de consumidores, inclusive aqueles que reclamam que os games não deveriam conter política. E isso nos serve apenas para lembrarmos a incômoda verdade: a de que o principal objetivo de toda big publisher é fazer dinheiro e prosperar vendendo joguinhos… e não opiniões.

Por muito tempo, videogames foram considerados brinquedos de criança e comercializados como tais. Talvez venha daí a ideia de que esses produtos devam ser desprovidos de qualquer aspecto “adulto”: salvo raras exceções, pais e mães não costumavam lidar com games. As limitações técnicas também não permitiam aprofundamentos, o que fazia que enredos de jogos do Atari fossem rasas sinopses resumidas em três linhas. Mas o que ninguém percebia é que havia contextos por trás daquelas simples criações, por mais simplórias e benignas que parecessem superficialmente.

Felizmente os games amadureceram, e os jogadores também — ou pelo menos todos deveriam. Assim, talvez o problema seja outro: frequentemente, aquilo que os críticos interpretam como “conteúdo político” é alguma observação progressista, uma contestação ao status quo ou uma luz favorável a minorias desfavorecidas. Quem não se lembra do escândalo online quando foi anunciado que Battlefield V teria mulheres como soldados jogáveis? Mas o contrário também se aplica: pega mal quando um game promete bater em temas espinhosos, mas acaba passando apenas de raspão sem se comprometer de fato, como foi o caso de Far Cry 5 e sua tentativa de trazer luz aos excessos dos cultos religiosos.

O fato é que nem sempre um jogo levanta uma bandeira óbvia ou coloca holofotes sobre alguma minoria para ser considerado “político”, e mesmo quando isso ocorre, para boa parte do público parece não haver muita diferença. Em jogos de tiro, por exemplo, a ideia de resolver conflitos “na bala” reflete uma linha de pensamento política óbvia que é reproduzida pelo jogo, mas é impossível afirmar que jogá-los nos torna mais propensos a ter uma arma ou a cometer violência. Da mesma forma que a questão da orientação sexual da protagonista Ellie em The Last of Us 2 carrega uma mensagem evidente, ainda que parte dos jogadores entenda isso como algo irrelevante para a experiência de jogo.

Só que é difícil agradar a todo mundo, e é por isso que games grandes continuarão a se assumir apolíticos, mesmo que o próprio ato de não se assumir politicamente também represente uma escolha política. Mas se os games refletem o mundo em que vivemos, então nada mais justo do que esperar que as questões que ainda enfrentamos no mundo real sejam abordadas neles, mesmo que sejam difíceis de engolir.

Imagino que boa parte das pessoas que conheço jamais pense “politicamente” quando joga um game. Eu mesmo, quando estou “fora do serviço”, fico mais interessado na ideia do escapismo e em não pensar muito profundamente — a não ser que o produto exija que eu pense e reflita na hora, o que raramente é o caso. Então, não estou dizendo que você seja obrigado a ser politizado para jogar, nem que precise procurar mensagens em todo jogo que encontrar pela frente. A questão é reconhecer que, no fundo, todos os games existem por causa de certas escolhas políticas. Você pode pensar diferente delas, optar por ignorá-las enquanto joga ou interpretá-las como bem entender. Mas deve ter a consciência de que, quando mergulha em uma experiência digital, está experimentando (e talvez absorvendo) uma cartilha de crenças, intenções e pontos de vista sobre o mundo.

Mesmo diante de opiniões contrárias, os games devem insistir em tratar dos assuntos complexos que muitos não compreendem ou aceitam, seja para incitar debates como para gerar reflexões transformadoras. Contrariando as vontades dos tradicionalistas, o mundo vai continuar a mudar e evoluir, e é bom que os nossos jogos consigam acompanhar esse fluxo. Então, deixe de lado essa velha crença de que videogames não deveriam ser políticos. Porque só o fato de você ainda pensar assim já é um ótimo motivo para que sejam.

Texto originalmente publicado no IGN Brasil em 8 de junho de 2020.


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